“O BRASIL SEMPRE FOI UM DOS PAÍSES ONDE COMEÇAR É MUITO COMPLICADO”

Fonte:http://epocanegocios.globo.com/Inspiracao/Empresa/noticia/2014/02/o-brasil-sempre-foi-um-dos-paises-onde-comecar-e-muito-complicado.html

 

Candice Pascoal sabia desde cedo que queria sair pelo mundo. Nascida na Bahia, com 13 anos fez sua primeira viagem aos Estados Unidos. Aos 15, se inscreveu em um curso de inglês no país. Na faculdade, ela já dominava quatro idiomas e morou um tempo em Paris antes de se mudar para Nova York, onde conseguiu estágio na Putumayo World Music, selo especializado em divulgar internacionalmente músicas regionais. Lá, ela lançou artistas no mercado e foi a responsável por abrir escritórios em dezenas de países, como México, Japão e Nicarágua.

Depois de cinco anos, Candice resolveu abrir uma consultoria para selos de música. Quando cansou-se do mercado musical, se especializou em arrecadação de fundos para ONGs internacionais, como WWF e Médicos Sem Fronteiras, e mais uma vez foi responsável por abrir escritórios em diferentes partes do mundo. Nessa época, mudou-se para Holanda e alguns anos depois, engravidou.

Quando seu filho nasceu, em 2011, decidiu tirar um ano para dedicar-se à maternidade. Atualmente, Candice comanda a startup brasileira Kickante, um site de crowdfunding que estreou em outubro do ano passado. Seu irmão toca o negócio em São Paulo enquanto ela trabalha da Holanda. Na entrevista a seguir, ela fala sobre a experiência de tocar uma empresa brasileira depois de tantos anos fora do país e dá dicas para quem quer ganhar o mercado internacional.

Como surgiu a ideia do Kickante?
No começo do ano passado eu vim para o Brasil e estando aqui eu percebi que algo que é absolutamente a cara do brasileiro e necessário para a população, que é o crowdfunding, não existia aqui com conceito que existe lá fora. O crowdfunding hoje nos Estados Unidos é uma ferramenta que é lugar comum para qualquer pessoa. Quem quer lançar um novo produto, uma nova ideia, faz por meio do crowdfunding porque tem um custo baixo e não tem risco. Depende apenas da sua força de vontade e criatividade. Lá tem ideias maravilhosas saindo do papel graças a esse tipo de financiamento. Acontece que na minha percepção, o povo brasileiro é o mais criativo que existe. Já trabalhei com times no mundo inteiro e nós somos um povo que busca sempre soluções, não para, está sempre buscando novas maneiras de fazer o mesmo. É um povo criativo e muito unido. Então tem tudo a ver com crowdfunding.

Vocês privilegiam algum tipo específico de projeto?
Não. Temos projetos de ONGs, artistas, atletas. É interessante que temos alguns atletas no site que estão tendo grande dificuldade de conseguir patrocínio porque as pessoas só pensam em Copa. A surfista Jaque Silva, campeã nacional, não conseguia 6 mil reais para representar Brasil na Austrália. Agora ela conseguiu arrecadar e está indo. O Guga (Gustavo Agne de Oliveira) é campeão de parapente. Ano passado ele foi convidado para representar o Brasil na competição internacional e não conseguiu ir. Este ano ele ia recusar de novo mas fez a campanha e em 10 dias arrecadou o que precisava. O crowdfunding permite isso. Não são as empresas ou o governo que decidem se seu projeto deve sair do papel. São as pessoas e a sua rede de apoiadores.

Você tem experiência de abrir empresa em vários mercados. Que dicas para começar o próprio negócio valem em qualquer situação?
Bom, o Brasil sempre foi um dos países em que começar é muito complicado. Mas para qualquer empresa é muito fácil começar um negócio e não prestar atenção nos detalhes. Isso não pode. Os dois principais conselhos que sempre usei e que sempre me ajudaram: fique atento aos detalhes e foque na simplicidade.

Que detalhes são esses?
Operacionais, legais e contábeis.

A parte chata, então?
Sim. Quando você é visionário, quer muito tirar algo do papel, simplesmente vai embora. No meu caso, no Kickante, a sorte é ter o Diogo, meu irmão e sócio, porque por mim eu vou embora, mas ele é focado na parte operacional e atento aos detalhes. Quando você lança uma empresa é muita coisa para fazer e você quer abraçar o mundo. Aí, perder o foco é muito fácil. Mantenha a simplicidade nos processos e tire a distração. As startups lá fora utilizam muito o conceito de O.K.R. (objective key results). Ele ajuda time a focar no que é importante. Todo mundo no time tem de quatro a seis objetivos que mudam a cada três meses. Ali, você tem descrito seu objetivo principal e como alcançá-lo. Isso dá esse sentido de focar no que é importante.

Especificamente no Brasil, o que é mais complicado?
A maior dificuldade que encontrei no Brasil foi a complexidade dos sistemas burocráticos. Tivemos que fazer uma blindagem legal antes de lançar o site. Contratamos uma empresa de advocacia focada em direito digital para saber quais eram as nossas possibilidades. Você precisa ser humilde. Tudo que você faz o contador precisa dar o ok, o jurídico precisa dar ok. De novo, a questão da simplicidade. Se tudo é complicado aqui, simplifique. Quem pode nos ajudar com isso? Confiamos no trabalho deles? Então vamos lá.
Na Holanda, nos Estados Unidos, é muito fácil. Você abre empresa pela internet, conta de banco pela internet, aqui não tem isso. É o primeiro baque. Mas tem um ponto que eu considero positivo: isso faz você prestar mais atenção em processos, em detalhes. Sou otimista em relação aos negócios aqui no Brasil.

O que é fundamental para empreender?
Pra você ser empreendedor de sucesso precisa ter muita persistência. Por exemplo, quando uma campanha de crowdfunding é bem-sucedida, demonstra que seu criador não só tem rede de contato que apoia e um produto bom, mas persistência. Existe algo dentro dele que faz com que ele tire aquele projeto do papel. Isso atrai qualquer investidor. O investidor investe mais na pessoa do que na empresa. Um dos maiores anjos dos Estados Unidos, o Paul Graham, investe antes de saber qual vai ser sua empresa. Porque ele sabe que a depender da sua força interna, você vai conseguir tirar o que for do papel. Se você não tiver isso pode ter a melhor ideia do mundo que não vai conseguir.

É difícil conseguir investimento no Brasil porque os donos das ideias não sabem se vender ou porque há poucas pessoas dispostas a investir?
Gente pra investir tem, sim. Tem investidor não só do Brasil, mas de fora, que está de olho no país. Mas o investidor precisa ver o que você tem a oferecer, porque ele quer ter retorno no investimento. Um investidor sabe que de repente vai colocar um valor na sua empresa e você vai perder o foco no caminho. Entenda, não é fácil tirar uma empresa do papel. Para qualquer pessoa existem empecilhos, muitos. Só que você tem que ter força para continuar, persistir e entender que esse empecilho não define seu sucesso. O sucesso não é uma linha reta. É uma linha louca, torta, e de repente você chega lá. Tem que ter persistência.

Para quem quer abrir uma startup, é mais importante desenvolver um negócio de acordo com o que está dando certo no mercado ou de acordo com o que os donos acreditam?
É importante pensar em algo que esteja de acordo com sua vontade pessoal. O caminho da startup não é um caminho fácil. A quantidade de pessoas que começam e desistem é enorme. E por desistir eu quero dizer desistir lá dentro – abandonar a ideia e trabalhar em vez de se esforçar. Eu, por exemplo, mesmo que alguém dissesse que o negócio de pneus é o que vai bombar no Brasil, eu não poderia começar uma empresa de pneus. Eu não ia conseguir prosseguir com a paixão.

Mas nesse mundo de novos negócios, você precisa partir do princípio que o fracasso existe, não?
Sim, a gente nunca sabe. E existe demorar mais do que você imaginava para dar certo. Mas pessoalmente, eu sou sempre grata, mesmo aos ensinamentos ruins. Quando eu estava na Putamayo, tivemos um caso na Indonésia. Estávamos abrindo o mercado e nossos parceiros eram pessoas com muita influência. Estávamos na expectativa, mas aí eles fizeram um requerimento muito chato: nenhuma capa de CD poderia ter negros. Estávamos começando a montar a estrutura da empresa e falamos que não iríamos apoiar a ideia, ia contra tudo que a gente acreditava. Tivemos esse baque. Mas aí fizermos a proposta de começar com outro tipo de música e introduzir aos poucos o nosso portfólio. Com essa estratégia, em um ano todos os CDs eram vendidos com as mesmas capas que tinham nos Estados Unidos.

Então nessa situação foi importante bater o pé?
É importante não ir contra a sua ética e seus princípios por causa do mercado. A gente estava 100% disposto a perder o mercado na Indonésia. Quando você começa a sair do seu principio para abraçar o mercado você se perde. Se você abandona o que acredita não vai gostar da empresa dali a um ano.
Outra coisa: existe certa arrogância cultural quando você é muito grande em um país e quer expandir. Tem que ter diplomacia, respeito em relação ao país em que está entrando. Crie uma estratégia em vez de ir contra e criar repúdio logo de cara. Essa sensibilidade que é típica do brasileiro me ajudou bastante lá fora. E isso não é só quando são pessoas de diferentes países. Rio, São Paulo, Bahia, mesmo entre os diferentes estados há diferença de mercado.

Que outras dicas você pode dar para quem quer expandir a empresa para fora do Brasil?
Primeiro, você tem que estar bem no seu mercado para pensar em expandir. Confira se a saúde financeira da sua empresa está em dia, porque você precisa investir tempo e dinheiro para se lançar lá fora. A segunda coisa é ser estratégico na escolha do próximo mercado. Os Estados Unidos, que é o sonho de muita gente, nem sempre é a melhor ideia. Países às vezes não tão populares têm grandes oportunidades, onde você vai ser recebido com portas abertas. Por fim, entre devagar. Busque uma parceria antes de montar uma estrutura própria para testar o mercado. Todas as empresas que eu expandi nós fizemos um “soft launch”. É como se você criasse a a versão beta da empresa no mundo offline.